domingo, 24 de janeiro de 2010

José Jorge Letria - Uma Viagem no Verde


Acordei com a palavra água
a dançar-me na boca. Tive sede, muita sede,
e fui beber. O dia, lá fora, estava azul
e tinha o tamanho de um rio
ou de uma cidade fantástica, e sorria.


O sorriso do dia é igual ao do sol.
É largo e branco. Tem dentro
os frutos doces da calma das manhãs,
e se for Verão são capazes de matar
a fome e a sede que têm os bichos,
que têm os homens, que têm as casas.


As casas? Também têm sede, uma sede
branca como a cal dos muros
que arde nos lábios e queima a garganta
que fala e que canta, que diz azul
e sonha outras cores, outros sítios;
uma sede que arrasta outra sede
e se veste de mar para fingir
que a não tem, que não quer saber dela.


Visita-me agora um pássaro e diz-me: estou
doente do fumo e da pressa do voo.
Quero um ramo alto para fazer poiso
e só encontro telhados, antenas de televisão,
cidades com tosse, nuvens tristes, aviões
carrancudos nas estradas do céu.


É um pássaro bonito de asas largas
e penas cor de arco-íris. Gostava de ser
um pássaro assim, eu que também
não gosto do fumo nem da pressa do voo.
Fica poisado no meu dedo a falar-me
do mapa das coisas que tem na cabeça,
a cantar-me as cantigas de vento
que traz na ponta do bico, a dizer
que o Inverno é um sopro gelado
que magoa o sol e os ossos das casas
e enregela a casca das árvores
e as escamas brilhantes no dorso dos peixes.
                                         (...)
Biografia de José Jorge Letria - visita este site:http://www.app.pt/nte/jjletria/index.html

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